Como era bom acordar no dia de seu aniversário. Despertou cedo como de costume, mas numa exaltação, num sobressalto de ânsia feliz. Lavou o rosto e escovou os dentes que eram metade postiços. E enquanto todos dormiam, ela fazia em seus pensamentos uma breve e orgulhosa retrospecção do que vivera e algumas idéias sugiram-lhe na cabeça em relação ao futuro. Preparou o café e agora esperava os primeiros telefonemas. Esperava atenta. O telefone tocou e ela se levantou meio sofrida e atendeu. Era o primeiro telefonema do dia e quem lhe desejava um ótimo aniversário e muitos anos de vida era a filha caçula, que sempre foi a mais bajulada, e que foi a primeira a sair de casa. Então voltou e sentou-se. Como era bom se desprender do trabalho no domingo. Pensava orgulhosa. Vou almoçar fora, e riu alto, escondendo os dentes com a mão, olhando para os lados para que ninguém a percebesse assim. Olhava para máquina de costura ao lado, um olhar cansado e conformado, quase comovido, por que era ali sentada que passava grande parte de seu tempo tentando atender a todas as encomendas que a faziam. Sentiu sede e se levantou, caminhou até a geladeira e enquanto isso olhava as paredes bem pintadas, os móveis polidos, as taças intactas. Tudo sem esquecer o almoço. O marido no dia anterior havia marcado de irem ambos almoçar num restaurante caro e bem visto pela cidade inteira, e ela quase sem nunca ter saído de casa pra esses lugares se alegrou tolamente. Pensava no que ia pedir quando o garçom trouxesse-lhe o cardápio. Pensava com que roupa iria, ficava em dúvida, e ria-se da dúvida, pois ainda era vaidosa, percebia, mesmo com 51 anos era vaidosa. De repente escutou ruídos vindos do quarto, caminhou até lá numa curiosidade tensa. Era o marido que abria os olhos devagar, preguiçosos. Remexeu um pouco na cama, enquanto ela de pé esperava os parabéns com os olhos secretamente felizes. Mas eis que o marido lhe desejou bom dia e não lhe parabenizou. Ficou nervosa, tentou encontrar um motivo, ele deve está brincando comigo daqui a pouco ele vai dizer: Como eu poderia esquecer seu aniversário? Vamos até almoçar fora hoje! Pensava tentando se controlar. O marido levantou-se, tomou café e ficou a olhar o chão quase dormindo. Foi então que margarida entristeceu-se, conformou-se com o esquecimento de seu homem. Sentou-se de frente pra máquina de costuras e se pôs a trabalhar. Como era bom trabalhar! Essa foi a forma que encontrara para fugir do mundo que a esquecia de vez em quando. Lá, sentada de frente pra máquina pensava, pensava. Mas não era culpa do marido esquecer. Já era velho e a memória gasta falhava freqüentemente. Foi então que repentinamente veio-lhe em mente a data. Ficou nervoso, como explicaria? Como fingiria que não esquecera de fato no início? Resolveu falar a verdade. Caminhou até a máquina e arriscou:
- Querida me desculpa por eu não ter lembrado assim que acordei ta?! Você sabe que essa minha cabeça não funciona mais como antes e vivo esquecendo certas coisas, mas nosso almoço ainda está de pé não é?
Os olhos de margarida cresceram de entusiasmo e alegria conformada. Disse que tudo bem, não tinha importância, afinal ele não esquecera completamente. Ficou esperando sem saber o que fazer para que o tempo corresse mais rápido, ficou esperando o meio dia. Queria sair na rua e ver gente. Foi aí que começaram a chegar alguns familiares no intuito de homenageá-la. E assim logo veio à hora, faltavam quarenta minutos para o meio dia. Entrou no quarto silencioso e só por dentro era possível sentir a batucada do coração. Abriu uma gaveta muito bem envernizada e tirou uma caixa onde guardava alguns cordões e anéis de falso ouro e falso brilhante. Escolheu um par de brincos e numa sutileza de adolescente se pintou. Colocou um vestido discreto de um branco florido. E perfumou-se levemente com prazer instantâneo. Depois de pronta e o marido vestido caminharam até o carro e adentraram no lado de fora da casa. Estava no lado de fora! Pensava com intensa liberdade e júbilo. E enquanto levemente o carro seguia, ela se assustava por ter ficado tão isolada. Observava com pura curiosidade as mulheres que caminhavam na rua indo pra lugar nenhum, mas caminhavam tão soltas, tão livres. E lembrando a máquina de costura sentiu angústia, quase entristeceu. Olhou para o marido que concentrado dirigia, sério mais de uma doçura que só ela conhecia.
- Vamos para um restaurante que fica de frente para o mar.
Quase não acreditou no que ouviu. Estava intimada. Ficou nervosa e feliz. Não sabia discernir ao certo o que sentia. Mas era bom saber pra onde ia. Era muito bom saber que sentiria o cheiro do mar. Sentaram-se um de frente para o outro e do lado esquerdo de margarida eis que a sublime perfeição quebrantada em espumas exalava maresia. Sim ela estava ali, não era sonho dessa vez. Ela estava à mercê de um vento forte e de um ar tão puro que ficou meio desengonçada. Depois que almoçaram, ficaram em silêncio numa tristeza amena de quem come em exagero. E olhando as ondas vorazes, as ondas que se desmanchavam nas grandes pedras, ela sentiu-se como uma onda. Ela sentiu-se tão grande quanto o mar e tão voraz que engoliria a vida num só trago. E a idéia de que mais um ano viria encheu-lhe os pensamentos. As expectativas começavam a se formar.
O dia terminou para margarida num parabéns familiar e coletivo, onde abraços eram o seu aconchego e beijos o maior gesto de afeto. Adormeceu exausta de tão feliz. No dia seguinte levantou-se cedo demais e se pôs a costurar, ligeiramente e ágil como um bicho, costurava.