sábado, 21 de janeiro de 2012

As Consultas de Dona Norinha

        Dona norinha morava no apartamento 343 da Rua Antônio Furtado a um quarteirão de um dos maiores hospitais da cidade de Fortaleza. Morava sozinha. A única pessoa que estava presente todos os dias na casa era a empregada chamada Jéssica que lavava, passava e cozinhava; calma e calada. Era a companhia de Dona Norinha que a sobrecarregava de tanto serviço. A moça chegava cedo e saia na boca da noite pra ir de encontro ao namorado toda cheirosa e trajando um vestido que mostrava as pernas. Dona Norinha advertia áspera: Você trate de chegar amanhã no horário, não posso deixar de tomar meu remédio e você tem que me dar na hora certa! A moça consentia com a cabeça, submissa. No dia seguinte chegava cedo e tinha que ser muito paciente, pois ao acordar, a patroa se sentia altamente estressada, precisava do seu remédio.
       Dona Norinha era aposentada do governo e tinha dois filhos que eram casados e moravam no Rio de Janeiro, precisaram mudar devido ao emprego, ambos eram sócios. Eles bem que tentaram levá-la, mas não quis ir, afinal não trocaria seu lar conhecido e calmo por um lugar que nunca havia morado antes com aquelas pessoas de sotaque diferente. Os filhos tentaram de toda forma convencê-la, mas estereotipada não sucumbiu, disse que Jéssica cuidaria dela e que ficaria bem.
       Sentiu profunda solidão nos primeiros dias em que os meninos se foram, pra ela eles eram ainda meninos. Pensava: meus meninos adoráveis. Estou sentindo tanto a falta deles. Ingratos me abandonaram pelo Rio. Jéssica meu remédio! Logo se acalmava e ia se sentar de frente pra TV para assistir sua novela preferida com aquele ator bonito, lembrava o seu marido quando mais novo. Ah, lembrava do marido e de repente aquele vazio e lhe embalar numa tristeza já antiga. Quanta saudade de Afonso que se foi antes dela, não aceitava esse fato. Mas já fazia um bom tempo que o marido havia morrido e se sentir triste não tinha mais graça, se sentir triste provaria apenas que ela era fraca, e fraca não era! Sempre conseguiu tudo que quis na vida, emprego bem sucedido de funcionária pública, o apartamento dos sonhos, a viagem. Ah, sentia-se cansada, com seus 75 anos, estava cansada. Durante a tarde tirava um cochilo e sonhava com o marido de quando em vez, acordava chorando. ‘’Jéssica já está na hora do meu remédio?’’ O remédio era um tranqüilizante para os nervos que, aos poucos, deixou Dona Norinha dependente. Quando lhe vinha a angústia logo pensava na cápsula que lhe trazia calma e chamava pela criada.
       Jéssica precisava lavar bem os pratos e talheres, pois se Dona Norinha encontrasse um resquício sequer de sujeira, gritava apavorada. Com um tempo ela foi criando uma mania de organização e limpeza detestável. Aos sábados gostava de sair para respirar um ar fresco, sentava na praça que ficava de frente para o prédio, respondia ao comprimento dos senhores, dava uns sorrisos brandos para as crianças que passavam alvoroçadas com sorvete na mão. Ela tinha uma amiga que se chamava Elizabeth e cujo apartamento onde morava era vizinho do seu. Elizabeth era mais nova e trabalhava com fabricação de roupas e outras peças de tecido. Possuía um grande respeito por Norinha. Elas conversavam sobre o passado.
       Uma vez por mês Dona Norinha decidia ir ao centro da cidade comprar tecidos e flores para os arranjos da casa, ligava para seu chofer preferido e amigo chamado Gilberto. Ô seu Gilberto não me venha com atrasos, quero que o senhor esteja às 8 da manhã na portaria do prédio, não quero pegar sol quente. O chofer muito educado e solicito aceitava as ordens e não se atrasava, chegava sorridente abrindo a porta do carro e dando a mão a senhora que subia com dificuldade no automóvel. Esse trânsito caótico; comentava para não perder a chance de criticar, ainda bem que não dirijo mais, e nem posso, já pensou seu Gilberto eu ter que disputar com esses infratores?! Deus que me livre, e sorria breve, com dificuldade. Chegando ao centro, na loja todas as vendedoras já a conhecia. Rigorosa ela analisava os tecidos levando em conta as estampas. Este aqui é para um vestido. Olha, esse dá uma bela toalha de mesa. Este é cafona, não vou levar. E a manhã passava ligeira. Gilberto lhe ajudava com as sacolas, exausta Dona Norinha voltava pro seu apartamento.
       Numa manhã de terça-feira, Jéssica precisou ir ao dentista para extrair um dente que havia dias a incomodava quando comia qualquer coisa. A patroa relutante concordou com a folga depois de muitas explicações e queixas da parte da criada - mas Dona Norinha eu não consigo me alimentar direito, como vou sobreviver sem me alimentar?- A patroa concordou, vá, disse depois de um tempo. O que na verdade Norinha sentia era medo da solidão. Tinha medo de sentir angústia. Por que quando se encontrava sozinha, vinha-lhe um vazio no peito, algo que a deixava piedosa, e precisava se distrair nesses momentos, mas sozinha ficava difícil uma distração eficaz. Antes de Jéssica sair para o dentista, explicou a patroa que o remédio ficaria dentro do recipiente amarelo no armário da cozinha. Norinha escutou e consentiu, vá logo para voltar logo, advertiu. Jéssica desceu pelo elevador de empregados e se foi solta.
       Definitivamente não gostava de ficar só. E se precisasse tomar banho, como secar o banheiro? Sem Jéssica na casa ela se sentia muito vulnerável. A campainha tocou apressada e ela num sobressalto respondeu que já estava indo. Quem seria e o que queriam? Vagarosa, Norinha foi em direção à porta. Era apenas um vendedor de livros que lhe contou uma estória mentirosa, claro, só podia ser mentira toda aquela estória, logo dispensou o moço e disse que não tinha interesse em livros didáticos. Ah! Acho que já devo tomar meu remédio, lembrou-se emergindo de uma nostalgia que a tomava desde que se sentou de frente pra TV, afinal a programação estava tediosa, e Jéssica demorava. Mas aonde Jéssica guardou mesmo o remédio? E num sobressalto levantou rápida e aflita, pôs-se a procurá-los. Vou ligar imediatamente para aquela menina. A moça não atendia. De certo o dentista lhe arrancava neste exato momento o dente de que tanto se queixava. E agora meu deus? E meus nervos como ficam sem os remédios? E começou a vasculhar gavetas, potes, jarros, e nada. Sem obter sucesso na procura começou a se sentir enfastiada, parou na cozinha e ficou de pé estática e silenciosa se concentrando nas lembranças, a mão trêmula: Ah, já sei! Nervosa e completamente ansiosa norinha abriu a portinha do armário da cozinha e retirou, rápida, o recipiente amarelo onde Jéssica guardava alguns remédios. Sacou a cartela de tranqüilizantes e num ímpeto de ansiedade e nervosismo acabou tirando dois remédios de uma vez só e engoli-os rápido, sem água. A casa estava tomada de um silêncio familiar e Norinha após engolir os remédios ficou parada diante do frasco sem pensar, até lhe veio um breve sorriso na boca de dentes postiços, mas foi um sorriso quase imperceptível e fechado que durou apenas dois segundos. Caminhou até sua cadeira de frente pra TV, pôs no programa e logo pode adormecer sobre o efeito duplicado do calmante. Quando Jessica chegou, muito preocupada, pois conhecia a patroa como ninguém e tinha absoluta certeza de que esqueceria o local do remédio, entrou gritando o nome da patroa: Dona Norinha, cadê a senhora hein? A patroa roncava com a cabeça virada pro lado. Quando tocou no braço da patroa percebeu que sua pressão não estava normal e ficou preocupada. Vou ligar para o Doutor Paulo.
       Após a visita do Doutor Paulo, que por pura sorte trabalhava dando plantão no hospital perto do apartamento de Norinha e que lhe receitou remédios para a pressão. Acontece que a patroa de Jéssica começou a sentir, segundo ela, umas dores grandes na boca do estômago e nos ossos. A moça não acreditava em uma só palavra, dizia pra vizinha que era tudo coisa de gente velha que não tem o que inventar aproveita e inventa doença. Mas a patroa insistia.
       -Jéssica não me venha com dentistas amanhã, tenho que ir ao hospital falar com o Doutor Paulo, minhas costas doem e preciso de um novo remédio pra dores, um mais forte.
     
       E diariamente como num expediente profissional Dona Norinha, preocupada com a saúde, ia até o hospital a um quarteirão de seu apartamento. O hospital era particular e cada consulta custava uma boa grana, o que não intimidava a velha. Todos os dias era uma doença maior, mais grave e urgente. A recepcionista de cabelos ruivos amarrados, os fios puxados pra trás com força, olhava a paciente com uma simpatia vinda do fundo de seu profissionalismo e dizia: 
       - Mas Dona Norinha o Doutor Paulo lhe consultou ontem, lembra? Ele passou até um remédio, que por sinal é o mesmo de todas as consultas.
      - Mas minha filha você não entende? Eu estou velha tenho que ver O Doutor. Diga-lhe que estou aqui, tenho certeza que vai me atender, eu preciso ter certeza do que estou sentindo.
       A recepcionista consentia e ia até a sala do Doutor:
       - Doutor Paulo, Sua paciente especial está aqui de novo. Disse que quer outra consulta.
     - Ah meu Deus, de novo Carmen? Diga-lhe que entre, acho que essa senhora na verdade sofre é de amnésia.
       E mais uma vez as queixas, as argumentações da velha. O Doutor ouvia tudo paciente, sorridente, numa simpatia vinda de seu profissionalismo. A paciente voltava pra casa com um sorriso quase fechado. Os que esperavam cochichavam fofocas ruins sobre Norinha - essa velha só pode ser louca - arriscavam. E Norinha se ia andando de vagar a dar observações sobre a consulta a Jéssica, que não escutava nada.
       Numa manhã de sol forte Norinha deu uma folga a Jéssica e não reclamou muito, a empregada espantou, mas ansiosa pra andar pelo mundo foi-se rápida saindo pela porta da rua. A velha se sentia tranqüila nesse dia, sentou-se comendo algumas bolachas açucaradas e redondas, mesmo sabendo do risco de Diabetes. E pôs-se a balançar sua cadeira pra lá e pra cá. Lembrou dos meninos, e sentiu uma angustiante saudade. Olhava o relógio contando a hora para o remédio controlado e foi vendo o dia passar na sua monotonia de sempre. O Doutor Paulo não estava no hospital na quarta-feira.
     Quando Jéssica voltou no dia seguinte se deparou com Dona Norinha dormindo ali tranqüila, e riu baixinho pensando: essa dona Norinha... Cutucou o braço da patroa e voltou rápida pra trás tapando a boca. Ela estava gelada e dura, meu Deus Dona Norinha morreu. O pessoal do prédio acudia a moça que soluçava aos choros. Ao lado da cadeira de dona norinha tinha uma cartela com apenas dois remédios e mais tarde descobriram que por algum motivo a velha exagerou nas cápsulas e não resistiu, o coração parou. No hospital sentiram sua falta. Os pacientes que esperavam na fila gostaram, a recepcionista ficou espantada com a morte repentina e com a causa, e o médico ficou triste, afinal aprendera nessa sua profissão a sentir empatia pelos pacientes. Jéssica ficou com a lembrança e alguns pertences da patroa depois da concordância dos filhos, e se foi por aí com seu namorado e seu vestido que deixava suas pernas de fora.