terça-feira, 17 de abril de 2012

       O que escrever quando se pensa no vazio? Como descrever o vazio? Enquanto não se descobre, é melhor inventar qualquer coisa e seguir escrevendo mesmo assim, só pelo prazer. Tantos planos eu tinha antes de possuir esse moderno programa. As idéias se vão perdidas como a lembrança de um tempo longínquo, onde as imagens reproduzidas são de um amarelo encardido, imagens difusas e incompletas. Agora mesmo, como não sei, lembrei-me de uma casa que frequentei em criança. Quando meu pai decidia reformar a casa onde ainda moro, para não viver entre a poeira que se expande rapidamente quando o pedreiro quebra o reboco, nos mudávamos para um quartinho numa vila aqui vizinha. Eu gostava como criança curiosa que era. Sair de casa me fazia sentir outra pessoa, mudada e experiente. Os donos da vila moravam na casa ao lado. E freqüentemente lá estava eu na sala dos vizinhos assistindo televisão, calado e com um quase sorriso nos lábios. Quando me sentia cansado cutucava minha mãe com voz manhosa, vamos pra casa mãe, e assim todos me olhavam zombeteiros e me imitavam: vamos pra casa..., eu sorria envergonhado. Eu sabia que lá não era minha verdadeira moradia, mas me era aconchegante o cheiro que as paredes conservavam. Um cheiro de parede recém rebocada. Um cheiro de cimento gelado. Como era um quarto apenas, minha rede ficava num canto apertado e eu, ainda pequeno, me encolhia como numa concha.
       Outra coisa me agradava: era possível alcançar a torneira do chuveiro, o que me deixava com uma impressão de independência. Do lado do quarto onde estávamos hospedados morava uma família. Era constituída por um casal de crianças e seu pai. Um homem de peito erguido e rosto sério. Não tinha mulher. Falava pouco com a vizinhança e todos sabiam que não duraria muito ali. Tinha um ar agressivo. O garoto seu filho era mais velho que a menina, então durante todo o dia enquanto o pai trabalhava longe de casa, era o menino quem cuidava de tudo. Da limpeza da casa, da merenda da irmã, e assim o dia e a infância iam se passando.
       Fiz amizade com os dois e conversávamos da janela mesmo, pois apesar de serem presos pelo portão da vila receberam ordem de não por os pés no lado de fora da casa, assim estando ambos sentados na janela e de pernas penduradas para fora sem tocar o chão não desobedeciam ao pai. E todo o dia lá estava eu a conversar com meus dois amigos, mas era pouco pra mim aquele encontro tão limitado, aquela distância me sufocava. Sem saber do que o pai dos meus amigos era capaz eu convidava-os a dar uma fugidinha rápida, afinal só à noite o homem sério voltava do serviço. Foi então que o menino sendo mais corajoso deu seu primeiro salto para o lado de fora, pisando no chão frio do corredor da vila, e nos juntamos para tirar a garota de cima da janela, a menina sorria assustada. E ambos se sentiram tão livres que sorriam e corriam para um lado e para outro numa restrição penosa. Eu que nunca havia sido preso pelos meus pais apenas me divertia com a liberdade de ambos. No dia seguinte repetimos a dose e tudo era mais divertido. A garota aprendera a saltar da janela numa habilidade selvagem, e saia de braços abertos pro céu rodando até ficar tonta. Sorrindo ela sentia o prazer de está do lado de fora, de sentir o sol macio em seu rosto. Fugida daquela penumbrosa prisão que era o seu lar.
       Um dia quando estávamos brincando no corredor, por acaso o pai do garoto saio mais cedo do serviço e de longe foi possível ouvir sua voz grossa e zangada. Deu um grito de ordem, enfurecido, meus amigos estremeceram e apavorados tentavam subir na janela, pálidos. Até que, assustado com a raiva do pai dos garotos entrei no meu quarto e só o que pude ouvir foram os gritos e as pancadas violentas que meus amigos recebiam do grande monstro. Encolhi-me na minha rede tampando meus ouvidos e sentindo certa culpa. Depois de um longo tempo de terror ouvi o silêncio, e mal consegui dormir ao menos pra fugir de tudo aquilo. No dia seguinte quase não consegui olhar para meu amigo que sentado na janela tinha uma tristeza nos olhos lacrimosos. A garota dormia na cama sonhando. Perguntei-lhe como estava e me respondeu que estava bem. Foi então que comecei a tentar esquecer o episódio terrível. Eles permaneceram por mais algum tempo na vila. A minha casa ficou reformada e voltamos a habitá-la. Um dia eles se mudaram e hoje por acaso lembrei-me deles.  Já faz onze anos que isso aconteceu.
       Quem ama sem doença sabe dar a liberdade que o próximo precisa ter pra ser feliz.
10/11/2010

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Rodovia Administrativa

       A avenida é um mundo nosso. Só nosso. Onde agente lembra e esquece coisas que só os quilômetros nos faz lembrar, nos distraindo. E a imensa lagoa onde passamos todos os dias abriga pescadores que lançam redes imensas como a vontade que os consome de pescar. A lagoa reflete o dia do céu, e a lua da noite. Lagoa silenciosa em seu tremelique contínuo de água ventilada.
      Sempre olho a lagoa e em minha mente se passa um filme calmo, talvez um romance entre um garoto e uma lagoa. Talvez uma atração descomunal por águas vastas e paradas, eternas. Águas rasas e repentinamente profundas.
      Acordei cedo para a realidade do dia. Na cabeça o compromisso, no cabide a roupa passada, lavada, antiga. Vesti-me com muito prazer, e fui me montando para o trabalho. Óculos escuros contra a claridade exagerada de fim de Março, fim de mês. Lá fora o vizinho indo comprar a galinha para a família que passa e fingi não me ver, me vendo todo. De quando em vez vemos alguém tão completamente que fingimos não ver. A rua esburacada a receber as rodas aceleradas dos automóveis decididos. Um automóvel decidido é uma pessoa decidida. As pessoas dormindo acordadas.
      O sol das nove da manhã a cegar os óticos problemáticos. Setenta por cento de problema de vista no olho esquerdo. Lá no fundo do coração um problema: indecisão explícita. Querer algo que se quer e não querer ter a certeza de que se pode ter. Confusão familiar. Acordei sorrindo de minhas próprias conclusões autênticas. Conclusões precipitadas.
      Fui andando vestido de jeans firme, blusa de botão, perfume doce amaderado caminhando em direção à improvisação. Ônibus improvisado. Minha voz era doce e firme, meus passos eram leves e certos. A cabeça erguida de confiança. Passageira confiança. Passageiros passos firmes. A fumaça do incenso na noite anterior a entorpecer a sala inteira, a expandir o aroma de rosas vermelhas.
      Já na porta de entrada a pergunta: para onde devo ir. Resposta: vá direto, dobre à esquerda do banheiro e leia: Administração.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Conturbadas Conclusões

       Muitos desejos meus foram sendo realizados com o passar do tempo, e inclusive com minha força de vontade. Não deixo de acreditar na lei da atração, pois sempre vi aquilo que desejei profundamente sendo realizado. Tenho orgulho dessa força natural que me envolve e que me traz o que quero. Mas em certos pontos específicos essa força falha continuamente. Será que meu desejo de possuir essas certas coisas é um desejo superficial? Será que no fundo eu não desejo o que momentaneamente quero? Chego a duvidar.
       Por vezes o desejo nos sobe a cabeça e nos deixa descontrolados: eis a compulsão. Quando encontro uma brecha para obter o que quero, e quando vejo que há possibilidade de obter o que me é desejado, sem medir muito as conseqüências futuras mergulho no prazer de possuir. Mas há algo que quero certas vezes que me parece tão distante que passo a me sentir tão fraco, tão vulnerável diante de tamanha carência, que a falta de coragem me toma por inteiro, e me tranco em mim mesmo, conformado apenas em ser quem sou sabendo o que sei.
        Percebi que eu costumava ver o mundo de dentro pra fora e agora passo a vê-lo de fora pra dentro. Tenho o ímpeto de sair de dentro de mim.  E me sinto alheio a muitas coisas e a muita gente que me rodeia. De quando em vez acabo sentindo que as pessoas mais próximas estão mais distantes ainda. E todas essas conturbadas conclusões brotam de uma consciência séria e calculista que talvez precise parar de analisar. Acho que me envolvo demais em minhas próprias análises, transformando-as em obsessões involuntárias.

Diário de uns dias passados.

       A chuva ameaçou cair novamente quando acordei para a manhã. O céu nublado me enchia de esperanças. Esperava eu uma chuva como no dia anterior que me deixasse em casa coberto por lenços. Quando o relógio marcou oito da manhã resolvi me levantar e fui para minha primeira aula de teatro no Teatro José de Alencar. As aulas começaram ontem, mas devido a grande chuva que deixou ilhada muita gente, achei melhor faltar. Ontem a chuva que caiu inundou muitos pontos da cidade. Carros ficaram parados na rua alaga. Teve gente que perdeu móvel. Teve gente que não foi trabalhar. Foi um temporal que começou na madrugada e só parou na tarde. Quando deu umas quatro da tarde o sol apareceu com seus raios a atravessar a porta da sala. Fui para o teatro debaixo de um céu carregado de nuvens escuras, premeditei uma chuva fina que caiu durante algumas horas.
        A primeira aula de teatro foi maravilhosa. Cheguei meia hora atrasado e percebi a seriedade que envolve meu professor e a grande sinceridade na sua busca de transformar aquelas pessoas que estão ali a lhe ouvir em verdadeiros artistas. Não pude explicar a turma o porquê de eu ter me interessado pelo curso, o quanto amo a arte, e o meu objetivo. Ao entrar na sala fui logo me juntando a um dos grupos que já estava formado e tivemos que improvisar uma peça de quinze minutos. A peça foi boa, não me acanhei. Amanhã farei uma breve apresentação individual e estou muito confiante. Quero muito continuar participando das aulas, pois me sinto ligado ao que mais amo: a arte.
        Senti uma dor de cabeça e tomei um remédio que a amenizou. Tenho me preocupado com o meu desempenho no trabalho, com minha vida profissional no ramo que atuo no momento, mas me sinto mais tranqüilo se comparado ao passado. Sinto-me mais capaz de conseguir um emprego melhor caso saia desse atual. E temos que confiar em nossa própria capacidade para crescemos.
         Ontem fomos comer camarão, eu e minha galera. Bem próximo do mar. Pude pisar na água gelada e sentir o mar me acariciando os pés. No domingo tomei banho no mar. Eu desejava mergulhar por entre as ondas vastas do mar mesmo em sonho. Era um desejo tão profundo que passei a sonhar e me sentir realmente dentro d’água. Domingo foi um sonho realizado. E hoje também.